quarta-feira, 14 de maio de 2008

Frescura de Água


Ele ergueu-se na minha frente, enorme. Escuro como a sombra, o penteado jamaicano aureolando uma face de gárgula: “Dá-me dois euros!” – ordenou.
Olhei em volta e vi uma paragem de autocarro a uns escassos cinco metros, com alguns pares de olhos postos em nós. Olhos imóveis, mãos e pés imóveis, que por nada se moveriam.
Fixei os olhos que me fitavam de perto, abri o porta-moedas e tirei um euro, que estendi. “Eu disse DOIS euros” – a voz crescera. Pensei: “vou levar um estalo, calma...”
Abri de novo o porta-moedas, estendi-lho e mostrei o conteúdo, pausadamente, com a tal calma que aconselhara a mim própria: “Só tenho outras moedas todas pequenas, ora vê...” Ele esticou o dedo, remexeu, constatou a verdade do que eu dizia e condescendeu “Tá bem, então...” – e deixou-me partir sem mais, quase com cumplicidade.
“Ao que a gente chegou”, pensei enquanto caminhava, perplexa...Mas não pude deixar de sorrir: devo ter ‘cara de parva’: há semanas, na Baixa de Lisboa, uma idosa estendeu-me a mão e disse-me sem rodeios: “dê-me tudo o que puder!...” Algum tempo depois, em Campo de Ourique, um homem pediu-me que lhe pagasse o almoço; contribuí e ele comentou de mão aberta: “não chega...eras capaz de almoçar só com isto?” Claro que não, de facto, e acrescentei mais um tanto.... Agora vem este e conta as moedas que trago comigo...
Pai Santo: neste mundo de sombras, qual a fronteira entre a partilha do Teu Amor e a cedência à chantagem, a exposição ao perigo?

“Filha de pouca fé,

...ainda não deste a última moeda que trazes contigo e sempre te sobrou, sempre se multiplicou, como outrora os pães e os peixes. Que mais queres? Porque duvidas da carência dos desesperados que vagueiam? Mais vale dar a quem não precisa, do que negar a quem necessita... E porque receias? A fronteira que buscas conhecer está inscrita no teu coração: a Paz pertence ao Amor, o medo não pertence. Pergunta-te: qual dos dois ficou em ti? O medo? A Paz? A Paz tem a frescura de água, da minha água. Ficaste em Paz? Então que isso te baste...”

domingo, 4 de maio de 2008

Vem, Espírito Santo de Deus!


“(...)Creio no Espírito Santo, Senhor e fonte de vida, que procede do Pai; e com o Pai e o Filho é adorado e glorificado: Ele que falou pelos profetas(...)” (Credo de Niceia, 325 EC)

Assim professamos a nossa fé no Espírito Santo de Deus que, em Pentecostes, por promessa do Filho, desceu sobre os apóstolos para que, pelos séculos fora, o Amor divino se revelasse por palavras e actos, em sabedoria, entendimento, conselho, fortaleza, ciência, piedade e temor de Deus, na máxima disponibilidade de cada um em favor de si mesmo e do seu próximo, superando a tendência para reduzir “o amor para com os irmãos a um vago moralismo ou a uma sentimentalidade epidérmica”, sem frutos.
Não nos basta, pois, limitarmos cegamente o nosso amor à contemplação da pessoa de Cristo, porque, sem o sabermos, ficamos desse modo ameaçados de “atrofia espiritual”.“Com certeza que Jesus é o sentido último da tua existência e só nele encontrarás o teu desabrochar como homem” , diz Jean Lafrance(1977), “mas Cristo não é um fim em si mesmo. Há um cristocentrismo que toca as raias da miopia e te introduz na ilusão, na medida em que te vela a relação com o Pai. Jesus é o caminho, a verdade e a vida. O seu único objectivo é fazer-te passar deste mundo para o Pai” (ibidem).
O Pai tende para o Filho, que nos foi ofertado, como o Filho tende para o Pai, a quem só Ele conhece, e no-lo-deu a conhecer . Tão intimamente que quem viu o Filho, viu o Pai; quem segue o Filho e o ama, ama n’Ele o Pai.
O desejo de Eternidade, desde sempre presente na humanidade, em todas as culturas, é o desejo irreprimível do encontro com Deus na Sua Totalidade e Plenitude, num abraço universal para onde converge cada ser humano de todos os tempos, que o “pré-sente”, desde a origem, em cada momento da sua curta existência, cada vez que “baixa as guardas” do orgulho e se abre humildemente, abandonando-se a um incompreensível Amor de que tem sede...

Vem pois, Espírito Santo de Deus, e deixa-nos mergulhados em Ti!
Dá-nos a fortaleza necessária para persistirmos de peito aberto a este mistério que nos deixa perplexos, porque foge à lógica... a sabedoria suficiente para aceitarmos esta ignorância, de coração tranquilo...a piedade para, mesmo assim, permanecermos confiantes no Teu Amor, haja o que houver, seja o que fôr e como fôr... e o entendimento bastante para nunca esquecermos que nos deste como irmãos milhões de outros filhos Teus, por quem somos responsáveis, e que cada palavra e cada acto nossos Te anunciam ou Te atraiçoam....
Vem, Espírito de Amor Absoluto, e deixa em nós a inconfundível luz do Teu reflexo...