quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Como a erva


"Bendize, ó minha alma, ao Senhor, e tudo o que há em mim bendiga o Seu santo nome (...) O homem, os seus dias, são como a erva, como a flor do campo assim floresce . Passando por ela o vento, logo se vai e o seu lugar não será mais conhecido"
Sl 103 1; 15,16

Tanta mágoa pelo esquecimento em que os outros parecem ter deixado ficar o nosso EU - terá, de facto, havido esquecimento?

Tanta ofensa por palavras ditas contra o EU - terá, na verdade, havido ofensa voluntária?

Tanto ressentimento pelo silêncio, tido como inimigo do Eu... - não será o silêncio, muitas vezes, apenas um modo atento da escuta respeitosa que pedimos?

Tanto sentimento remoído, de abandono, desilusão, traição, desamor...

Tanto tempo gasto a embalar o Eu!

Tanto espaço que o nosso EU ocupa!...

E, afinal, o vento apagará o nosso rasto, porque as nossas raízes são frágeis e os caules secarão.
Acarinhemos pois as flores, diferentes de erva para erva, porque é delas a beleza dos campos e delas ficarão as sementes, que o Semeador cuidará.
Não se vire a erva contra a erva, para que a terra não se torne estéril ou campo de espinheiros...

Bendize, ó minha alma, ao Senhor!






quarta-feira, 14 de maio de 2008

Frescura de Água


Ele ergueu-se na minha frente, enorme. Escuro como a sombra, o penteado jamaicano aureolando uma face de gárgula: “Dá-me dois euros!” – ordenou.
Olhei em volta e vi uma paragem de autocarro a uns escassos cinco metros, com alguns pares de olhos postos em nós. Olhos imóveis, mãos e pés imóveis, que por nada se moveriam.
Fixei os olhos que me fitavam de perto, abri o porta-moedas e tirei um euro, que estendi. “Eu disse DOIS euros” – a voz crescera. Pensei: “vou levar um estalo, calma...”
Abri de novo o porta-moedas, estendi-lho e mostrei o conteúdo, pausadamente, com a tal calma que aconselhara a mim própria: “Só tenho outras moedas todas pequenas, ora vê...” Ele esticou o dedo, remexeu, constatou a verdade do que eu dizia e condescendeu “Tá bem, então...” – e deixou-me partir sem mais, quase com cumplicidade.
“Ao que a gente chegou”, pensei enquanto caminhava, perplexa...Mas não pude deixar de sorrir: devo ter ‘cara de parva’: há semanas, na Baixa de Lisboa, uma idosa estendeu-me a mão e disse-me sem rodeios: “dê-me tudo o que puder!...” Algum tempo depois, em Campo de Ourique, um homem pediu-me que lhe pagasse o almoço; contribuí e ele comentou de mão aberta: “não chega...eras capaz de almoçar só com isto?” Claro que não, de facto, e acrescentei mais um tanto.... Agora vem este e conta as moedas que trago comigo...
Pai Santo: neste mundo de sombras, qual a fronteira entre a partilha do Teu Amor e a cedência à chantagem, a exposição ao perigo?

“Filha de pouca fé,

...ainda não deste a última moeda que trazes contigo e sempre te sobrou, sempre se multiplicou, como outrora os pães e os peixes. Que mais queres? Porque duvidas da carência dos desesperados que vagueiam? Mais vale dar a quem não precisa, do que negar a quem necessita... E porque receias? A fronteira que buscas conhecer está inscrita no teu coração: a Paz pertence ao Amor, o medo não pertence. Pergunta-te: qual dos dois ficou em ti? O medo? A Paz? A Paz tem a frescura de água, da minha água. Ficaste em Paz? Então que isso te baste...”

domingo, 4 de maio de 2008

Vem, Espírito Santo de Deus!


“(...)Creio no Espírito Santo, Senhor e fonte de vida, que procede do Pai; e com o Pai e o Filho é adorado e glorificado: Ele que falou pelos profetas(...)” (Credo de Niceia, 325 EC)

Assim professamos a nossa fé no Espírito Santo de Deus que, em Pentecostes, por promessa do Filho, desceu sobre os apóstolos para que, pelos séculos fora, o Amor divino se revelasse por palavras e actos, em sabedoria, entendimento, conselho, fortaleza, ciência, piedade e temor de Deus, na máxima disponibilidade de cada um em favor de si mesmo e do seu próximo, superando a tendência para reduzir “o amor para com os irmãos a um vago moralismo ou a uma sentimentalidade epidérmica”, sem frutos.
Não nos basta, pois, limitarmos cegamente o nosso amor à contemplação da pessoa de Cristo, porque, sem o sabermos, ficamos desse modo ameaçados de “atrofia espiritual”.“Com certeza que Jesus é o sentido último da tua existência e só nele encontrarás o teu desabrochar como homem” , diz Jean Lafrance(1977), “mas Cristo não é um fim em si mesmo. Há um cristocentrismo que toca as raias da miopia e te introduz na ilusão, na medida em que te vela a relação com o Pai. Jesus é o caminho, a verdade e a vida. O seu único objectivo é fazer-te passar deste mundo para o Pai” (ibidem).
O Pai tende para o Filho, que nos foi ofertado, como o Filho tende para o Pai, a quem só Ele conhece, e no-lo-deu a conhecer . Tão intimamente que quem viu o Filho, viu o Pai; quem segue o Filho e o ama, ama n’Ele o Pai.
O desejo de Eternidade, desde sempre presente na humanidade, em todas as culturas, é o desejo irreprimível do encontro com Deus na Sua Totalidade e Plenitude, num abraço universal para onde converge cada ser humano de todos os tempos, que o “pré-sente”, desde a origem, em cada momento da sua curta existência, cada vez que “baixa as guardas” do orgulho e se abre humildemente, abandonando-se a um incompreensível Amor de que tem sede...

Vem pois, Espírito Santo de Deus, e deixa-nos mergulhados em Ti!
Dá-nos a fortaleza necessária para persistirmos de peito aberto a este mistério que nos deixa perplexos, porque foge à lógica... a sabedoria suficiente para aceitarmos esta ignorância, de coração tranquilo...a piedade para, mesmo assim, permanecermos confiantes no Teu Amor, haja o que houver, seja o que fôr e como fôr... e o entendimento bastante para nunca esquecermos que nos deste como irmãos milhões de outros filhos Teus, por quem somos responsáveis, e que cada palavra e cada acto nossos Te anunciam ou Te atraiçoam....
Vem, Espírito de Amor Absoluto, e deixa em nós a inconfundível luz do Teu reflexo...

quarta-feira, 30 de abril de 2008

Depois da Noite


Abba,

Na pobreza da noite da cidade, quase despida de estrelas pelo brilho do néon, os meus olhos cansados procuram vislumbrar a via láctea, como um rasto de grãos de milho, derramados por amor dos famintos através do rasgão que fizémos no saco sem fundo da tua misericórdia...
Na Lua ausente ou encoberta pelos telhados altos, invento a imagem de um pão redondo e cheio, que mesmo quando mingua deixa a certeza de voltar a ser inteiro e para todos, por igual...

Nesta hora do sono que não vem, o coração vigia e bate no peito, contrito, porque sabe muito das dores e pouco dos remédios e os ouvidos, moucos do ruído, não conseguem deixar de repicar o eco dos noticiários densos, de mistura com os roncos crescentes da fome de milhões, lá longe, muito longe, mais perto, aqui tão perto, mesmo ao lado, talvez...

Sinto-me perdida, Abba... esta voz roufenha é a voz sincera da minha impotência, cheia de vontade de abraçar o mundo, mas paralisada nas boas intenções que não matam a fome a ninguém - nem a de quem não come, nem a de quem come com o sentimento de culpa por ter comido......


“ Filha amada,

Não leste o que teu irmão escreveu?
Ontem e sempre, outros sofreram como hoje muitos sofrem. Antes de ti, multidões imensas se viram perdidas nessa dor que sentes, mas ele confiou em mim e disse:
‘A tua misericórdia, Senhor, está nos céus, e a tua fidelidade chega até às mais excelsas núvens. A tua justiça é como as grandes montanhas; os teus juizos um grande abismo. Senhor, tu conservas os homens e os animais. Quão preciosa é, ó Deus, a tua benignidade, pelo que os filhos dos homens se abrigam à sombra das tuas asas.” (Sl 36, 5-7).

Confia, pois, que eu suprirei a tua fraqueza, serás meu instrumento, minhas mãos de carne. Faz tudo o que estiver ao teu alcance e confia...confia demoradamente, abandonadamente... sempre e sempre... e na noite escura verás a Alvorada “

segunda-feira, 21 de abril de 2008

"Senhor, mostra-nos o Pai e isso nos basta!" (Jo 14, 8)



Esta ânsia de Filipe ver o Ser Supremo foi a de todos os homens de todos os tempos. Ainda que invocado sob nomes diferentes, configurado segundo o imaginário das diversas culturas, foi a Ele, ao Criador, à Origem para a qual tudo tende, que sempre buscaram. E ainda assim é. Grande foi e continua a ser a nossa sede de Deus... e a nossa dúvida, a nossa hesitação, a nossa negação até.
Por vezes, nem sequer identificamos com clareza a origem dessa sede, que se instala como um vazio difícil de preencher. O nosso orgulho intelectual impede a aceitação do que a razão não alcança e a física não demonstra.
Por vezes, também, confundimos o Abba de Jesus com as cúpulas da Igreja e o seu percurso; o palavreado com a Palavra; os comportamentos duvidosos com a Atitude sincera de quem procura o Encontro.
Jesus, o carpinteiro pobre e mal calçado que se havia de dar até à exaustão, preso por um sonho a um patíbulo, respondeu a Filipe: “Quem me vê, vê o Pai. Como podes dizer ‘mostra-nos o Pai’? (...) as palavras que vos digo, não as digo por mim mesmo, mas o Pai, que permanece em mim, realiza suas obras”...(Jo 14, 9-10).
A verdadeira cúpula da Igreja de Cristo é Ele mesmo, que sonhou arrebatar-nos consigo para o tão ansiado Encontro; a Palavra certa, aquela que não saiu apenas da sua humanidade, mas da vivência íntima com o Pai, adorado em Espírito; a Atitude perante a existência, aquela que Ele demonstrou e que é revelada pelos comportamentos de quem n’Ele crê: “Se me amais, observareis os meus mandamentos” (Jo 14, 15).
Ele não é o Fim em si mesmo, mas “o Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo, 14,6), a porta por onde somos convidados a entrar para contemplar o Rosto de Deus - Alfa e Ómega de todas as coisas, Amor Incondicional e sem limites, onde o Homem mergulha e a sede finalmente se sacia.

sexta-feira, 11 de abril de 2008

Pão nosso, Pai nosso



A notícia já tem alguns meses: A alta do preço do petróleo tem levado os países mais ricos a procurar outras fontes alternativas de energia: o custo do milho, do trigo e da soja, já em Fevereiro tinha triplicado e “no espaço de alguns anos os Estados Unidos destinaram 40 mil toneladas de milho para produção de bioetanol” (27/02/2008, Canal de Notícias do Vírgula, citando o Financial Times).

De então para cá, nada melhorou: em desespero, multidões da América do Sul protestam contra o aumento do custo dos cereais... acima de três dezenas de países estão à beira da fome, sem que as organizações internacionais tenham meios para deter a catástrofe; já se fabrica pão de batata em alguns locais...
No noticiário do pequeno écran, à hora do nosso almoço (que dor visceral...) alguém dizia que se queima o pão dos pobres para alimentar os automóveis dos ricos.

Andamos distraídos, mas aqui mesmo, nesta estrada larga para o mundo, basta pesquisar apenas duas palavras: fome e biocombustível para aceder a um manancial de informação terrível. A fome alastra, como onda programada, que varre dos continentes os mesmos de sempre: os mais pobres, filhos de pobres, pais de crianças famintas...

Pai Nosso, que estás nos céus e nos conheces em tristeza e esperança, santificado seja o Teu Nome em toda a parte.
Puseste em nossas mãos a sorte da Terra, que sangrámos até à exaustão e asfixiamos todos os dias, desrespeitando a Vida. Ainda assim, ajuda-nos a emendar o mal feito, a nunca desistir de trabalhar por um Reino melhor e muito mais justo, para que seja feita a Tua vontade.
Que na mesa da partilha, como “altar do mundo”, o Irmão não encontre apenas a pedra da opressão e a água escassa e inquinada dos desertos, mas o pão e o vinho, fruto da videira e do trabalho do homem, num fraterno e contínuo memorial a Teu Filho.
Perdoa-nos tanta indiferença à governação do mundo, tanta devoção estéril, tanta palavra oca, e renova-nos o desejo de renúncia ao egoísmo, à futilidade e ao supérfluo de cada dia.
Sobretudo, Pai, livra-nos da cobardia, do silêncio cúmplice e da inacção, para que possamos alimentar a Esperança da Renovação, em solidariedade no espantoso assombro de por Ti sermos chamados filhos.

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Fica connosco



Chegamos a Emaús todos os dias. Não vimos a pé, conversando pensativamente, em tom de desabafo, sobre os nossos desapontamentos e esperanças. Vimos de carro, por entre engarrafamentos e gritos de buzinas, doentes de um mal da alma a que chamam “stress”, que começa quase sem se dar por isso e depois nos consome por inteiro.


Não conversamos pelo caminho porque o ruído é muito, a pressa ainda maior, e tudo o que há para ser dito aparece resumido na voz do locutor de serviço: guerras aqui e além, gente de todas as idades que se agride, rapta, assassina, assalta, atropela, protesta nas ruas... ou apenas a ansiada informação sobre os caprichos do sol ou da chuva.


Nenhum de nós aniquilou no seu íntimo os desapontamentos e as esperanças, simplesmente mal somos capazes de os identificar sem lhes atribuir um preço em euros ou dólares.


No entanto, Senhor, sabemos - porque nos disseram! - que pernoitas algures por aqui, sob telhados discretos de casas encravadas entre milhares de outras, e que te reconheceremos pelo partir do pão, num momento de partilha. E que nada cobras por escutar os nossos desapontamentos, antes nos acalmas; que o Teu pão, que abençoas e partes, não tem preço nem sofre inflação; e que divulgar esta notícia por toda a cidade é acreditar que muitos mais tectos poderão abrigar-te em renovada Esperança.


Nunca te vimos, é certo, nunca te tocámos e às vezes tudo isto nos parece muito estranho, mas decidimos acreditar e sem reservas confiar em Ti...


Pernoita, pois, connosco também, Senhor, que se faz tarde nesta nossa Emaús!